Crônica: Sutiã ao chão ou uma quase revolução

Rita de Podestá

Saio da aula, dispersa, com fome, com sono, carregando uma mochila cheia, muito cheia, uma bolsa térmica com a marmita que tinha uma comida insossa, resquícios de quem saiu de uma intoxicação alimentar e teme até a migalha do pão de queijo. Pendurada na mochila, uma jaqueta, e sim, eu em meio há tantos objetos. E enquanto andávamos pelos corredores externos da faculdade vejo no chão, aos meus pés, um sutiã (ou soutien caso prefira o estrangeirismo francês).

Um sutiã velho, preto puído, quase cinza, de alças, com um bojo sutil, sem arame, parece até confortável na medida em que um sutiã possa ser confortável, parece meu, tenho o roxo, e o preto, peraí. É meu. Parei e fiquei olhando para o sutiã jogado no chão, olhei no que pareceram horas no meu tempo de abstração necessário para entender a situação. E nem me dei conta das pessoas compromissadas, sempre estão, que saíam para aulas, estágios, trabalhos, que observavam minha interação com o sutiã estendido no chão. Ninguém disse nada, mas eu posso garantir que sim, todos me olhavam.

Peguei, desta vez em segundos, e sim era meu. Como?

Eu não estava usando um, mas mesmo se estivesse, um sutiã de alça não se desprenderia de mim num milagre tarado da mão invisível. Meu olhos cansados também não eram fruto de uma noite sexual inesquecível na qual, na pressa, saio com um sutiã na cabeça, imagina, a aula inteira com um sutiã na cabeça, e não percebi enquanto o professor falava da teoria do romance, da trajetória do herói, e Capitu, traiu ou não traiu? O mesmo professor que encontrei poucos minutos, no mesmo corredor da grande queda do sutiã. E que me cumprimentou num modo educado risonho e que talvez, só talvez, presenciou calado a cena do meu encontro com a peça íntima que caiu do céu. E então professor, idealismo abstrato ou romance da desilusão?

Coloquei o sutiã na mochila, não sem muito esforço devido à falta de mãos livres, e segui para a cantina, que era esse meu único objetivo antes do drama íntimo do percurso. Comprei um café e o atendente disse que eu estava sumida, e de primeira achei que era uma cantada, talvez porque eu estivesse sem sutiã, ou já é sabido por toda universidade que ando lançando sutiãs pelos corredores, já tem vídeo no Facebook, tá no grupo de família do WhatsApp, virei meme da página do presidente como símbolo da vergonha nacional. Não, eu estava mesmo sumida.

Tomei meu café enquanto um grupo ao lado discutia astrologia e uma menina, veja só, se disse escorpião com ascendente em áries, assim como eu, e a vênus?, alguém pergunta, do jeito que você é aposto que sua vênus também é escorpião. Eu não sei qual é a minha vênus, mas pensei que alguém com vênus em escorpião deve sair por aí jogando sutiãs no palco, na cara dos amantes, na porta da igreja, na janela do vizinho e nos corredores da faculdade. Melhor, nem usa. Afinal, por que mesmo que usamos sutiãs, se é tão melhor quando já tira a blusa e não tem nada.

E olhei para minha roupa, o macacão é frouxo, meio largo, com pouco esforço eu me mostro de top less e ainda assim eu saio de casa, de ônibus, que indecência! Indecência nada. E daí? liberdade, sim liberdade. Liberdade de jogar o sutiã no chão, no concreto, na grama, no taco, no porcelanato, onde for. Foi então que pensei num movimento novo, mas imitando o velho, revolucionário, mas sem queimar nada. Seria assim, todas as mulheres tiram seus sutiãs enquanto andam pela cidade, do nada, no meio do dia, da rotina. Tiram, jogam no chão e continuam andando, trabalhando, fazendo seja lá o que faziam. E regra é essa: se uma mulher vê a outra tirar tem que tirar também, sem rir, sem falar. E aos poucos o chão vai ficar cheio de sutiãs. Calçadas, canteiros, becos, ruas, avenidas, pontes, viadutos, a cidade inteira coberta de bojos, tomara-que-caia caídos, alças finas ou cruzadas, sutiãs pretos, brancos, vermelhos, com estampa de corujinha, bege! Sutiãs ao chão!

Até que todas as mulheres, juntas, soltam um suspiro longo e fino, finalmente, então isso é poder respirar, como é bom. E mulheres de todo o mundo começam a se unir. Mulheres, libertem seus seios presos e fartos ou não fartos, não importa!

Levantei da mesa da cantina e fui para minha árvore, ou melhor, a árvore onde eu faço as sestas quando almoço na universidade, às quintas, e sentada na grama finalmente me lembrei. Tirei o sutiã em casa — onde não se usa sutiã nem por decreto, mas eu usava porque o moço da limpeza passaria recolhendo o lixo, e minha blusa era branca, e eu achei que era melhor evitar a transparência. E assim que ele tocou a campainha, aí está Severino, muito obrigada, fechei a porta e me livrei do bojo com alças. E foi por preguiça de ir ao quarto que coloquei o sutiã dentro da manga da jaqueta jeans que estava em cima da mesa de jantar. A mesma jaqueta que peguei apressada pela manhã.

Foi isso, só isso, e agora que me lembro, pensando bem, esse é um péssimo início para uma revolução.

Rita de Podestá é escritora e roteirista. Graduada em comunicação pela PUC Minas, pós-graduada em Literatura Comparada pela Universidade Nova de Lisboa e estudante de Letras da USP, trabalha há dez anos com produção de conteúdo para diversas mídias. Finalista do prêmio SESC de Contos Machados de Assis – edição 2017, já publicou a novela ‘Céu de Janelas’ pelo Selas Edições e ‘Minas de tantos Geraes’ pela Editora Veredas.

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