Conto: CHORAR UM AMIGO

Conto de Flávio VM Costa

Sim, eu sou preto, nunca neguei isso a ninguém, e sou um preto diferente porque nunca perdi um amigo para a violência. Nunca havia perdido, quero dizer. Todo preto é diferente, você me dirá, toda pessoa é única, tem suas particularidades, suas idiossincrasias, você usará essas palavras bonitas, como se eu estivesse desacostumado a ouvi-las. Tudo muito bem, posso concordar com você. Fui criado em um bairro periférico, numa parte por assim dizer diferente do bairro, uma zona quase de classe média, repare na qualidade das casas na rua onde me criei, saboreie esse sorvete daqui da Paccolini, é o mesmo servido aos sócios do Clube Inglês. É o mesmo, prove! Delícia o de manga, não é? Eu estava dizendo que nunca um amigo meu havia sido assassinado, nem pela Polícia Militar, nem pela gente do crime, essa mesma gente com quem joguei bola no Centro Social Urbano, que fica aí do lado, caras que agora disputam cada boca de fumo de Pernambués. São três, quatro, cinco, dez facções… um amigo meu nunca havia sido varado de bala até o sábado anterior ao carnaval. Recebi a notícia em um quarto de hotel de praia, onde me hospedava em companhia de minha esposa. Sou um homem convencional que diz a alguém que acaba de conhecer esta é minha esposa, sou um cara meio antiquado e até galguei alguns patamares na escala social, pois passo férias em balneários onde os comerciantes têm coragem de cobrar duzentos contos por uma moqueca de peixe com camarão e eu tenho a petulância de pagar esse valor, pois sou conhecido como um perdulário, e aqui em Pernambués nós sempre tratamos bem o português, fique você sabendo, em casa era proibido usar gírias e meus pais implicavam com meu tá ligado, você entende? Não precisávamos entrar no movimento negro, filiarmos a partido de esquerda para andarmos com altivez, nós nunca precisamos disso, de bengalas coletivas, da proteção grupal, andamos sós, nos viramos sós, acredito sim nisso, que cada um se vira como pode e vamos deixar de demagogia, você me desculpe a prepotência, nós somos mesmo pretos diferentes e houve um chefe que me chamava de Rei do Congo, pelo meu andar, o meu andar altivo. Era ironia, claro, uma piada e também um reconhecimento dissimulado de minha postura nada servil. Nós somos filhos de trabalhadores de nível médio do Pólo Petroquímico, filhos de taxistas, de sargentos do Exército, e meu avô era dono de duas padarias. Não somos pouca merda, somos um prato cheio de cocô. Estávamos e estamos longe da riqueza, só que somos remediados. Não estamos assim lá embaixo, lá no final de linha, no Alto do Cruzeiro, na Guine, onde meu amigo foi assassinado com não sei quantos tiros, e o que se faz quando um amigo morre, se chora, não é mesmo? E não consegui chorar porque a morte dele já era um fato esperado, ele até durou demais, morreu depois dos trinta, e eu sabia que ele havia passado um tempo na Lemos de Brito por participar de assaltos a bancos e ele estava, veja como era adequado o apelido de Loucão que demos a ele, e estava o abestalhado, roubando carros na Guine, não se rouba em sua própria área, é uma regra elementar do mundo do crime. Ele era um cara digamos assim meio rebelde, corajoso, audacioso. E altivo também ele era assim como eu sou. Porém, altivo do jeito dele. Era também um sujeito extrovertido, lembro que rimos muitas vezes juntos e era difícil vê-lo abatido pelas chamadas dificuldades da vida. Sinto agora saudades de nossas risadas simultâneas e sei que agora sempre sentirei essa saudade. E ele se destacava também pela sua inconsequência em seu modo de agir. Era um intrépido. Uma vez a gente quase morreu nas mãos de um policial civil bêbado e esse policial civil bêbado estava saindo do antigo Espaço Útil, que ficava ali no começo do Cabula, após a ladeira, e era para lá que nós estávamos indo, para tomar umas cervejas e paquerar mulheres, quando ao final da rua Thomaz Gonzaga, quase na esquina, Loucão encarou o policial civil bêbado que vinha em direção contrária à nossa, saindo justamente do Espaço Útil, e disse o que você está olhando? vá se foder, meu irmão, foi algo assim que ele disse, Loucão não admitia olhares atravessados, e o policial civil bêbado disse como é que é? e apontou uma pistola em nossa direção, e nesse exato momento eu estava encostado em um poste e fiquei paralisado, de lá eu não saía, não conseguia reagir, foram poucos segundos em que achei que iria morrer, morrer do nada, e se não fosse a atitude de Michel que teve a frieza, Michel, o Gato Mestre, teve a frieza de chegar ao policial civil bêbado e dizer calma, calma, eu conheço você, rapaz, talvez eu tivesse morrido mesmo, e Michel realmente conhecia o policial civil bêbado, que, por sua vez, respondeu você me conhece de onde, rapaz, de onde é que você me conhece? e Michel repetiu calma, calma, calma e, aos poucos, conseguiu convencer o policial civil bêbado que realmente o conhecia e que nós éramos gente boa e que tudo não passou de um mal-entendido, e assim o policial civil bêbado não atirou, recolheu a pistola, ainda com desconfiança, recolheu a pistola e o policial civil bêbado era preto e se ele tivesse disparado contra nós, seria mais um caso de preto matando preto em Salvador. Não que os brancos não cometam assassinatos, entenda. Brancos quase sempre são mandantes, convém não sujar as mãos. O ódio racial não está em mim, porém vejo o que acontece e naquela noite havia pelo menos dois pretos, Loucão e eu, um pardo, Michel, e um digamos socialmente branco, Fabrício, que também ficou paralisado, igual a mim, apenas à espera de receber seu tiro, sem qualquer reação. Loucão já naquela época havia experimentado cocaína, o que marcou o começo do fim de sua trajetória. Michel me deu a notícia da morte de Loucão pelo WhatsApp e como não me respondia, eu falei com Fabrício, que me confirmou a notícia de que Loucão foi alvejado no campo da Guine. Naquele campo eu joguei algumas vezes, não sei dizer quantas, só sei que jogamos uma vez contra os caras de lá, um desafio de galeras, e naquela vez eu me lembro, eu fui goleiro na maioria do tempo em que durou a partida e tomamos de doze a quatro, ou de treze a quatro, só sei que acabamos sendo goleados e aquela foi uma partida que mostrou que por mais que eu fosse bom, por mais que superasse a miopia e fosse ágil, eu nunca seria um goleiro profissional e então era melhor optar pelo plano B, e o plano B me levou a um quarto de hotel de praia, onde estávamos nus minha esposa e eu, lado a lado na cama, e assim desta forma eu soube que Loucão havia sido fuzilado pelos caras de Guine, e minha primeira reação foi procurar um short para vestir, pois me incomodava receber nu a notícia da morte de meu amigo, que também deveria estar nu, naquele mesmo momento, ou poucas horas antes, não que isso importe, meu amigo deveria estar nu em uma maca gélida do Nina Rodrigues e depois de me vestir com o short e ficar assim digamos mais apresentável, eu pensei será que alguns dos caras que participaram do assassinato de Loucão jogaram aquela partida, será que um dos assassinos fez gol em mim naquele jogo? O jogo foi disputado lá em 1995, 1996, 1997, não depois desse último ano, disso eu tenho certeza. E dias depois quando encontrei Michel em Pernambués e conversamos em frente à casa de minha mãe, ele disse, realmente, essa parte do bairro não é favela, é uma parte quase de classe média. Não somos qualquer merda, Binho. E tem gente de nossa turma que virou médico, Alisson, engenheiro eletricista, Adriano, mecânico, Birigui, funcionário público de nível médio em um tribunal federal, Neinho, técnico em hidráulica, o próprio Michel, advogado, Rodrigo Rabicó, dono de uma frota de carros, Fabrício, músico, Hilton, professor de escola primária, Everaldinho, todos nós quando crescemos encontramos o nosso caminho individual, o caminho burguês, menos Loucão, já que o crime não é um caminho, não é mesmo? Não ao menos o tipo de crime cometido por Loucão. Ele estava dominado pela cocaína quando morreu. Me garantiram que ele não era viciado em crack. Era cocaína a onda dele. E Michel contou que havia conversado com Loucão no mesmo dia em que ele morreu, poucas horas antes de ele ser assassinado, e Loucão disse algo assim porra, Binho vem a Pernambués e nem procura os camaradas e ao escutar essa frase eu fiquei chateado, pois sempre perguntava sobre ele a seu primo Laércio, quando eu chegava em Pernambués, sempre perguntava cadê Loucão? Vai tomar jeito? e Laércio dizia que tentava falar com ele, levá-lo para a igreja, pois agora Laércio é evangélico, mas Loucão não o ouvia. E durante essa década inteira que fiquei sem vê-lo, Loucão encontrou minha mãe diversas vezes no bairro e ela sempre perguntou se ele iria tomar juízo e ele respondia invariavelmente vou, minha tia, diga a Binho que vou mudar, vou sair dessa vida. E eu julgava que ele ainda estava preso pelos assaltos a bancos, não sabia que ele estava solto, não sabia que ele tinha voltado a morar na Guine. Nas últimas vezes que eu estive em Pernambués, onde me sinto bem e mal ao mesmo tempo e é assim que deve se sentir alguém que deixou o bairro de infância para trás, larga toda essa vida e volta apenas de visita e é assim que alguém deve se sentir perto de seus familiares, só que deixemos minha família pra lá dessa vez, e eu perguntei pelo meu amigo Loucão. Só depois de sua morte, eu soube que meu amigo Loucão, a quem eu não via há mais de dez anos, soube por meio de Michel, nosso amigo em comum, que Loucão estava zangado comigo, zangado é exagero, certamente chateado, talvez decepcionado. A última vez que eu o vi, e isso já faz mais de dez anos, ele estava trabalhando como vigilante na Quinta dos Lázaros e nós o encontramos lá em um dia de sábado e dali partimos, eu, ele, Michel e Fabrício para beber na casa onde Loucão estava morando, acho que no IAPI, e eu fiz aquele meu sermão, como sei fazer muito bem, meu louvor à mediocridade, minha ode à vida pequeno-burguesa, por favor, deixe-me usar um termo antigo, eu disse a ele para terminar o supletivo, para estudar, você é um cara inteligente, eu disse a ele, era mesmo um cara inteligente, ele poderia entrar na universidade, afinal as cotas foram aprovadas naquela época, e nesse ponto eu só quero deixar bem claro que eu não fui aprovado por cotas, porque cotas, meu amigo, é bom para os outros, minha vaidade não suportaria e cada conquista é individual, acredite em mim, eu insisti nesse ponto de que havia cotas e as cotas eram para rapazes como ele, enquanto bebíamos Skol e ele retirava o uniforme de vigilante de cemitério, usá-lo era uma humilhação para ele e eu bem percebia isso, e Michel e Fabrício falavam de suas últimas conquistas amorosas, esses dois sempre foram os galãs da nossa turma, conversadores como a porra, nem por isso mentirosos, exagerados talvez, e eu insisti com Loucão para que ele estudasse, Loucão, o primeiro amigo que perdi para a violência. Eu tinha uma vaidade besta, ora, eu vim de Pernambués e não tenho nenhum amigo morto pela polícia nem pelos caras do crime, eu costumava dizer, nós andamos com altivez pelo bairro, e a primeira vez que corri risco de perder um amigo para a violência foi quando houve um assalto no ônibus no qual Michel trabalhava como cobrador e ele tomou uma coronhada que cortou seu supercílio esquerdo e eu fiz um texto sobre o ocorrido, porque quando a gente escolhe a profissão de escrever tudo se transforma em material de escrita e que se foda se fazer isso terá efeito sobre os outros, sobre quem amamos, e eu fiquei pensando nisso ao escrever sobre a morte de Loucão, porque tentei escrever sobre a morte de Loucão, porém não consegui escrever, essa profissão fode até com a dor, eu li isso em algum lugar. Você não consegue sentir a dor e escreve porque a história é boa de escrever e que se foda os outros. Alguém escreveu essa frase antes de mim. Eu curti a estadia no balneário com minha esposa, viajei para Salvador dias depois e continuava pensando em Loucão, que era meu amigo a quem não via há mais de dez anos, e eu perguntei a Michel se tínhamos tudo feito para ajudá-lo, se a gente poderia realmente ajudá-lo e quem respondeu foi Birigui, que nunca gostou de Loucão, que um dia nos fez passar vergonha ao tentar brigar com Loucão na frente de todos na praça principal de Pernambués e Birigui falou que eu considero quem me considera, querendo dizer que Loucão estava aquém de qualquer consideração, que o destino dele estava marcado, a gente nada poderia fazer. Ouvi repetidamente nesses dias, toda vez que falava de Loucão, que ele tinha escolhido aquele caminho e que não havia outro fim para tal trajetória, e fiquei me perguntando se realmente fizemos, amigos de Loucão que éramos, tudo para ajudá-lo. Se não é muito cômodo culpá-lo pelas suas escolhas, escolhas que não eram escolhas de verdade, já que as mesmas pessoas falavam também de destino. Pode-se fugir do destino? Eis uma pergunta que se repete por ali tanto como aquela de que se há vida após a morte. É bom não pensar nessas bobagens pomposas, mas acabamos pensando. São verdadeiras obsessões, não é mesmo? E os caras da Guine, Michel me contou, invadiram a casa de Loucão e o arrastaram a murros, pontapés e cusparadas até o campo da Guine, que não era tão longe, ainda assim era uma boa caminhada, e lá no campo, onde eu tomei doze ou treze gols quando tinha doze ou treze anos, onde meu sonho de ser goleiro profissional começou a morrer, lá no campo da Guine fuzilaram meu amigo Loucão. Ele tomou uns doze, treze, talvez quinze tiros. Talvez mais. Como agora virou moda, filmaram com celulares o corpo ensanguentado e perfurado de balas de meu amigo Loucão e divulgaram pelo WhatsApp e uma vizinha recebeu o vídeo. Michel e eu nos recusamos a assistir a tal vídeo. Então assim eu perdi meu primeiro amigo para a violência, então não poderei mais me considerar um preto diferente, como gostava de pensar, mas não de dizer. A primeira pessoa a quem digo isso agora é para você nessa sorveteria que eu frequento desde pequeno, acho que você deveria provar o sorvete de pistache, e é a primeira e única vez que digo essa frase: sou um preto diferente. Diga a frase para depois desmenti-la. Não poderia repeti-la. Já não é mais uma frase verídica. Nunca na verdade eu fui um preto diferente. Que diferença afinal seria essa? O racismo nos torna todos iguais, como bois são iguais a outros bois, e essa é a única igualdade que experimentaremos na vida. Não, não sou coisa nenhuma. E a única vez que chorei foi quando Michel me disse que meu amigo Loucão estava chateado comigo porque eu, no entender dele, não o procurava quando visitava o bairro de Pernambués. E talvez eu tenha chorado por vaidade, você entende? Chorei não pelo meu amigo Loucão, que estava viciado em cocaína e roubava carros em Pernambués e foi fuzilado no campo da Guine, chorei porque um amigo morreu achando que eu não o considerava digno de estima. Chorei porque sempre gostei de ter a fama de um cara que preza pelos amigos, que se importa com o destino dos amigos, qualquer que fosse a posição social do amigo eu o tratava como igual, gostava de pensar que era assim que eu agia, e a verdade é que derramei duas ou três lágrimas pela minha vaidade ferida e não pelo meu amigo Loucão, que morreu fuzilado em Pernambués porque talvez fosse um cara altivo, talvez porque roubasse carros, porque talvez estivesse viciado em cocaína, ou talvez porque fosse, simplesmente, um preto igual aos outros, como descobri que eu também sou.

 

Crédito foto: Rodrigo Sombra

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