UM PALHAÇO – Conto de Flávio VM Costa

Isaías contemplava o rosto moreno, demarcado por lápides de espinhas mal camufladas pela maquiagem. Aquele rosto ainda jovem, mas já tomado pela decrepitude, dominava as feições da aspereza.
– Então? O senhor tem ou não tem? Se o senhor não tem não posso fazer nada pelo senhor.
– Eu? Claro que tenho. É só que…
Remexia sem método nem objetivo o interior da pasta, imitação de couro com manchas de desleixo. Isaías voltava a perscrutar aquele rosto impaciente. Demorou um pouco nos olhos castanhos, tentou engatar uma frase… e se lembrou da felicidade que sentiu em seu primeiro engarrafamento, era um carro tão bonito… perdeu o rumo da conversa.
O uniforme verde-musgo deformava o corpo dela. Aparou o coque.
– Bem, o senhor pode voltar outro dia, com a documentação necessária.
– Veja você…
– O senhor pode voltar quando estiver com a documentação, caso contrário nada posso fazer pelo senhor. São as regras… afinal, o senhor tem um cheque em seu nome, ou não tem?
Isaías saiu, sem fechar a pasta, o vento chicoteando-o na tarde de agosto. Voltaria a chover. Ele não precisava passar por aquilo. Voltou-se e viu que ela o olhava com a satisfação de se ver livre de um inconveniente. Sou transparente para todo mundo, quem dera voltar a ser opaco, pensou. Da chuva ele não tinha medo. Gostaria de evitar que anoitecesse. À noite era hora de estar em casa, tudo que ele menos desejava.
Subiu a ladeira aos pulos e logo já passava pelo Central. As moedas trincolejavam nos bolsos. Queriam liberdade, novas aventuras. Talvez, um caldo de cana… os ambulantes recolhiam com pressa as mercadorias… e esbarrou em um sujeito troncudo.
– Sai da frente, cheio de pulga!
– Desculpe, amigo…
O sujeito percebeu o desconcerto de Isaías, apertou-lhe o ombro como se pedisse desculpas, e se afastou em direção à lotérica. Bateu o desespero nele também, pensou Isaías. Antes, os gerentes de banco quase o sufocavam com ofertas de empréstimos. Agora, todo mundo tira uma lasquuinha da minha desgraça.
Sou mesmo um pirão perdido, bem dizia meu pai.
Isaías resolveu voltar.
– Mas o que senhor…
– Digo-lhe somente uma coisa: Jorge será informado de seu comportamento. A forma como você trata os clientes está abaixo de qualquer padrão de dignidade.
– Que Jorge?
– Jorge meu amigo, Jorge o gerente regional. Jorge que me incumbiu de testar o atendimento aos clientes nas lojas do centro.
– O senhor…
– Jorge. Grave o nome.
A pasta protegia apenas o rosto da chuva. Ao entrar na Lapa a calça pesava-lhe. Retirou as moedas e parou em frente a uma lanchonete. Ficou em pé, pois uma goteira bombardeava o único banco disponível junto ao balcão. Ele poderia contar cada grão de açúcar naquele suco de maracujá; bebeu quatro. Isaías encarava os passantes, incapaz de frear o tempo.
Isaías descobriu que ela estava em paralelo à sua fila para pegar o ônibus. Continuava aparando o coque, inquieta. Quando teve certeza de que ela o havia reconhecido Isaías pousou o polegar direito sobre o nariz. E remexeu os outros dedos como se tocasse trompete.

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