Conto: DIGA LÁ, REI

Flávio VM Costa

Uma moedinha, pelo amor… Pare um pouco, vai chover. Pare… O que é que tem? Ontem foi igual a hoje e será feito sempre. O que é que tem? Você ri. Ouça-me. Encoste aqui. Os dias são assim… Todos iguais. Pare, eu lhe peço. Isso… Isso… Então… Saiba uma coisa, senhorita: o mal germina no meu coração! Leve-me a sério quando eu grito isso! Não há quem consiga mensurar o ódio que rumino nas entranhas. A voz que ecoa por mim vem diretamente do inferno. Os ateus muxoxam, deixe estar, miseráveis! Já estive rei e voltarei a sê-lo. Sempre fui. Sempre sou. Não estive porra nenhuma, corrijo-me. Sem essa que todo mendigo é um rei. Situação temporária, eis tudo. A vitória inimiga é uma dama fugidia. Cavalgaremos sobre os ossos deles, antes que a chuva final transborde por toda a terra. Minha penitência chegará ao fim. Sofrimento eterno torna-se entediante. Acertarei no gasparino. Não se espante com minha sursundução. Há olhares mais atrozes. Se meu cariz não te apraz seja cristã e magnânima, vire o teu e cuspa! Palavras eu uso com a liberdade que me concedem os farrapos. Pulo de lá para aterrissar acolá. Uma sucessão de frases curtas excelentes, eis o que importa! E Salvador será novamente a capital do Império! Mastigo o feijão com nojo, o arroz tem consistência de vermes e o gosto de suor se imiscui até na água que bebo. Mas voltarei às minhas delícias, meu doce. À minha farofa, Mademoiselle Capô de Fusca! Eu notei, eu notei! Hoje eles não colocam farinha, parece proibido aos pedintes, e tenho ânsia de vômitos quando mastigo algo que não tenha farinha, meu doce! Diga-me lá, coração! Quem tolera feijão aguado, arroz meio azedinho, carne dura igual à pedra? Sem farinha para fazer a massinha… Com a mão. Com a mão! Não sou bem dado à histeria, este esporte divertido. Mas quem suporta? Orixás comem farinha de mandioca, a ambrosia de Zeus e apaniguados era farinha de mandioca, e o maná com o qual Jeová granulou o deserto de escorpiões para judeus famintos era farinha de mandioca. Minha boca emite obrigados! Obrigado para cima! Obrigado para baixo! Pois não, como não! Passe na frente, com licença! Grato pelas moedas sujas de cinco centavos! Minha cabeça movimenta-se com humildade, mas nos olhos, como naquele poema, só espelho desprezo e escárnio… E mais alguma palavrinha forte… Isso sim… Mas me recupero e começo a falar dos tempos idos e alguns até choram. É preciso dizer antes que eu desça. Já com você… Com você, melhorarei minha linguagem. Terei a mão menos pesada para teus ouvidos frívolos. Faz calor, Mademoiselle Capô de Fusca! E daqui a pouco chove! Sempre chove, e essa cidade nunca fica limpa. Até os ratos sentem asco quando andam por essas ruas. Eles se rastejam céleres e celerados, realizam o botim e retornam ao seu buraco. Fazem abluções assim que entram na toca. Eu vi! Eu vi! Contarei uma anedota para a senhorita, pois é nisso que consiste tudo. Mulheres gostam de rir. Homem é aquele que faz uma mulher gargalhar… Contar uma história faz-se necessário. E assim tornar plausível o adultério, a fraude, a autoilusão, o sexo anal consentido, a concórdia e… Os livros de história… Como posso esquecer? Quando na qualidade de menino acreditei que a escravidão não havia acabado antes, pois nós, os negros, simplesmente não queríamos que ela acabasse, repare na sutileza do argumento, Mademoiselle Capô de Fusca, pois nós, os negros, éramos sabedores de nosso lugar, os livros atestavam. Eu decorei. E então a Princesa Isabel resolveu que era uma coisa indigna e que por isso Castro Alves amputou o pé e Frei Caneca perdeu a cabeça e que a derrama foi um movimento de libertação e sendo assim minha tataravó nasceu de um ventre livre. Inventaram tanta coisa sobre a gente… Nem sabemos de onde a gente brotou. Mas sabe-se qual rumo tomar: Quinta dos Lázaros, conexão no Nina Rodrigues, classe executiva! Mas que me importa? Que se matem! Que matem! Minha primeira anedota é esta. Nossos livros de história eram antologias de anedotas. Relatos edulcorados de como escrotos dominam escrotos. Militares, fazendeiros, militares, fazendeiros mineiros, empreiteiros emergindo das crostas de toda a terra, fazendeiros paulistas, pois a fazenda é tudo nesta terra, militares cariocas, militares alagoanos, militares gaúchos… E aí a porca torce o rabo, pois não há um gaúcho que não seja um fanático. Tudo muito lógico. Revisei tudo, eu sozinho uma comissão da verdade! Mandei imprimir, com meu selo dinástico, uma coleção de relatos precisos… Nosso registro oficial. Isso me deu um sossego de cem dias… Depois, caí! Me arrebentei! Minha cabeça vai e não vem… Nossa! A falta de farinha me faz doente! Vê como fede, meu doce? Sinto-me decompondo por dentro, os ossos não resistirão por muito tempo. Mas deixa lá, não me pegue sem autorização! Você não se lembra de mim é? Pois bem, finja! Espertinha! Malaquias! Finja que não se lembra, finja que não participou dos desfiles na Fonte Nova, das paradas e quermesses em Pituaçu, das cerimônias de beija-mão no Campo Grande! Você deveria ser uma das mais empolgadinhas, vê-se pela cara… Mulheres com caras de esfinge não são confiáveis, mas são boas para… Ai! Estou mesmo mal! Consegue suportar o cheiro? É o cheiro do ostracismo, de quando se sente sozinho e se tem que palmilhar cada polegada, cada degrau por onde se rolou deposição abaixo… E mata-se, veja bem, mata-se um homem! Mata-se um homem, por engano… Mas de que diabos eu estou falando? Que se matem! Que matem! Eu mesmo já não matei? Matei porque era necessário. Não matarás não é uma lei tão forte assim. Se tivesse matado mais estaria me lambuzando em farofa. Farofa de dendê… Farofa de banana… Farofa d’água… Farofinha de manteiga de garrafa… Farofinha, meu amor! Saiba que as leis são aplicadas de acordo com sua força. Você não acredita? Pensa que sou broco? Pois então por que me parou para escutar? Não matarás não era nem o primeiro mandamento. Dê-me um cigarro… Gosto de mulheres que fumam… Assim já treinam o bo… Hum, não há no mundo nada mais saboroso do que este veneno, nem mel de mulher! Sabe ao que me refiro? Sabe? Desconfia? Compreendeste? Tu o dizes! Um dia, vós sabereis! Posso perceber que você tem uma inchadinha… Gosto das inchadinhas, elas valem quanto pesam… A língua tem que trabalhar, para cima e para baixo, para o lado e para outro, e língua vai e língua vem… Escrotidão, Pornografia e Pompa… Eu gosto mais de Pompa, de Pompa foi meu reinado e o que seria desta nação de degredados, formada por portugueses fugidos, italianos famélicos, holandeses estupradores, alemães sarnentos, bantos capturados e tupis subjugados sem a Pompa? Sem um fraseado pomposo como criar uma aristocracia dentro de uma nação de leprosos? Não se pode arremedar os franceses para todo o sempre. De que tipo de xoxotas você acha que foi parida toda essa gente? Um curupira quando avança retrocede, meu doce. Não protege ninguém. Vira bolsa de madame. Eis o nosso povo. O saci pulará para todo sempre até encontrar uma mina terrestre. O boto virou moqueca. Olha a muriçoca… Vá para o cu de quem te mandou, bicho traiçoeiro! Dinheiro de cana-de-açúcar não será suficiente. Dinheiro de cacau não será suficiente. Dinheiro de café não será suficiente. Dinheiro de borracha não será suficiente. Não se vira aristocrata apenas com o tilintar! Que se matem! Que matem! Quando retornar eu serei magnânimo. Não mais de mil cabeças rolarão. Matar é bom, mas somente o necessário. Necessário, somente o necessário, o extraordinário é demais… Cantarole comigo… Necessário, somente o necessário… E o sangue será doado para o Hemoba. Vou me abrigar aqui, pois lá é vem chuva. Venha também. Outro dia fui nadando da Tancredo Neves a Garibaldi. Não acredita? Pobre tola! Tola da Inchadinha, o melzinho aí deve ser grosso, hein? Alimenta uma família inteira… Ah, Inchadinha! Pensa que sou louco? Para abocanhá-la a boca abre assim e a língua dobra assim, ó! Agora que não tenho dentes deve caber todinha na minha boca. Sucção, avante! Dona Melzinho Grosso… Hum hum esta fumacinha deliciosa, assim é gostoso morrer, não é? Hum hum mentolado é horrível… Bom é este amargor, essa sensação que o resíduo deixa na língua, bom é sentir o câncer nos comer por dentro… Por qual razão esses homens só conseguem se locomover com esses andares? Veja esse aí! Algo se passa. É-lhe impossível andar ereto a esse aí, só o faz gingando. Vou estabelecer a lei do andar. Andar ereto. Quem descumprir se tornará perneta da perna de pau. Será uma lei forte! Pare de olhar para meu olho! Ele voltará ao lugar que lhe compete. As pessoas conversam, andam, dirigem, comem, cagam, se esfregam umas nas outras, viajam, traem, bocejam, opinam, concordam, tomam banho, dormem, fazem negócios e planos, planos tão tolos, são tentativas de… Tudo o que elas querem é esquecer… Não importa! Elas não percebem o quanto estão sós, pois não querem, Inchadinha! E se um homem não consegue se dominar e colocar os outros sob seu jugo, ele fica simplesmente com a bunda de fora, e ninguém, Inchadinha, perdoa uma bunda ao relento… Nhac! O que é que tem? Que se matem! O que é que tem? Dizem que meu reinado foi de sangue e de comedela, mas não é o que se lê nos editoriais de A Tarde. Lá se encontra a verdade dos meus atos em linguagem que faria corar o Padre Vieira. Dizem que eu abusei das prerrogativas. Dizem que minei as instituições. Dizem que polvilhei com intriga e maledicência as almas dos meus súditos. Que afoguei o sertanejo e estrangulei o litorâneo. Que expulsei os gaúchos de Barreiras e salguei o São Francisco. Hipérboles… Sofro dores por todo o corpo. Preciso de um podológo, de um dermatologista à moda antiga, que lancete furúnculos… Que se matem! Meus decretos eram de prosa esmerada; as frases, lapidares… O golpe veio com interjeições e com deselegância, recusei o degredo e fugi dos meus captores. Pensa que morrerei numa ilha? Exílio em Itaparica? Que comédia! Agora percorro toda Salvador, as ladeiras, as ladeiras assassinas, eu ando oculto, descalço, macilento, tombado. Aos poucos eu arregimento poucos. E se tornarão muitos. Na San Martin sussurram meu nome. No Corredor da Vitória procuram-me sobressaltados. No Uruguai já se referem a mim como se eu nunca tivesse ido. No Horto Florestal… O que me importa o Horto Florestal? O que é que tem? Aquilo lá vai se tornar cinzas… O que é que tem? Converso com crianças, vinde a mim o bando de pequenitos! Sei conversar naquele linguajar, na língua do x… Elas me levam aos pais, aos irmãos mais velhos. Todos dizem, ele não era tão mau assim. Muita coisa boa ele fez. E derramam feijão aguado na marmita. Ele era eu. Eu sou ele. Falo de mim enquanto escuto sobre ele. Ai, Inchadinha! Você não se aborrece? Você é inteligente, mas não faz mal reiterar. Reiterar não dói. Enquanto me dão restos de comida eu devolvo com frases de esperança, de um retorno mais estupendo que o de Sebastião. Eles ainda estão com os sentidos embotados. O golpe lhes incutiu na consciência que meu reinado foi maléfico. Mas eles se convencem de que têm saudade. Ai, que saudade! Aquele era um tempo bom! E no final, estão alistados. Os miasmas da traição se dispersam. Eu os tirei do nevoeiro, como posso ser mau? Logo eu que levei água, banana e maniçoba! Logo eu que tornei mais barato o mocotó e o sarapatel! Que decretei as festas de camisa patrimônio imaterial, que redecorei os camarotes, que estabeleci CLT para os cordeiros, que os retirei das encostas, que levantei as barracas de praia, que pavimentei o Subúrbio Ferroviário, que construí o metrô, que recoloquei as pedras portuguesas! Eu, um pai de todos! Hoje releio os diários e os livros dos golpistas, os órgãos oficiais dos poderosos de turno, e casquino. As frases são vazias, recheadas de volteios, alcançam notas altíssimas e não dizem nada! Pois é isto. Perderão pela prosódia. A chuva deu uma estiada. Não veremos corpos boiando, corpos soterrados. Pena! É sempre estimulante. Deixe-me um cigarro, meu doce, mais um, sinto que te convenci, te ganhei pela curiosidade… Já tenho exército… Sim, homens e mulheres, você ri, não precisa fingir que não se intimida, finja que não foi tocada pela palavra, finja, Inchadinha! Mais uma palavra e te coloco de quatro, minha besta, e começo a lancetar esta xota de cinco quilos! Você ri como conquistada, na Bahia uma mulher não pode rir assim, quantos estupros não começaram com um sorriso? A saia curta, um convite! Pois é, Inchadinha! Ai, Inchadinha! Você ri como se colocasse em posição para ser apreciada e devorada. Delícia! A chuva voltou! Você ri, mas estará na primeira fileira e se lembrará desta chuva, do que ouviu e sentirá orgulho quando empalar o primeiro infiel. É tempo, Inchadinha! Saiamos à chuva, Inchadinha! Veja minha lança, repare no sebo! Vivemos tempos bélicos e erguerei a minha lança. Avante, Inchadinha! Assim mesmo na chuva! Avante, nade! Os dias galopam velozes e idênticos.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *