Conto: Um Quadro Técnico

Conto de Flávio VM Costa

O senhor me pergunta quando virá um preto, não saberei lhe responder, sei que aqui o dinheiro embranquece, o poder embranquece, pois veja que aqui ninguém me parece habilitado… talvez o garçom possa nos ajudar a resolver tal charada. Garçom! Ei! Você aí mesmo, garotinho… chegue mais meu caro, chegue mais perto, com essa zorra toda você não irá conseguir me ouvir… e eis, meu caro, que lhe pergunto: quando virá um preto? Veja o senhor como ele ficou assustado. Agora está confabulando com os outros garçons, formou-se uma comissão, estão discutindo a melhor maneira de responder ao enigma, mas observe, enquanto aguardamos a resposta, meu bom senhor, aquele homem, aquele homem alto e garboso, garboso mesmo, eu admito, pois veja… aquele sujeito é mesmo um prodígio, e morrerá prodigiosamente e morrerá refestelado, pois homens como ele morrem refestelados na Bahia… ele chegou mais perto de nós, vou falar um pouco mais baixo… esse indivíduo bajulou os carlistas e agora abana o rabo para os petistas que jogam guloseimas que ele abocanha, mastiga muito rápido, deglute, digere e, por fim, expele em forma de airosas pepitas da fortuna… veja como ele cresceu, como o terno é, digamos, bem cortado, risca de giz, como é óbvio o seu arrivismo, a Bahia dispensa segundas leituras e eu só gostaria que alguém me explicasse os petistas, se o senhor puder me responder… Oh! Chegou nosso o garçom, então, pai, quando virá… ôxe ôxe ele deixou uma garrafa de Black Label. Hehehehe. Ele deixou uma garrafa de Black Label! Pois é essa a resposta que define a Bahia, nós o questionamos quando teremos um governador preto e o garçom nos traz uísque! Bebemos, pois não. Sim, senhor, sim! A garrafa inteira, não se faça de rogado que o senhor lambeu os beiços quando viu a garrafa. Pois é, ficamos sem resposta, mas temos nosso uísque. Keep Walking, hehehehe. Sinto-me alegre hoje. Estou contente pelo senhor, por ele e por mim. Vamos esperar pelos marqueteiros, nossos profetas, afinal, eles não inventaram há um tempo que era bom Salvador ter um vice-prefeito que fosse preto? Pois é, meu caro amigo, meu dileto confrade, pois é, vai que eles encasquetam que daqui a um tempo é bom ter um neguinho ou uma negona, um pardozinho que seja. Talvez seja melhor esperar pela decisão deles, se é que eles, os marqueteiros, continuarão a existir depois da queda dos alemães, mas mesmo assim é melhor esperar pela decisão deles desde que haja a benção dos templários do lixo, dos prédios e dos ônibus, estas três pestes que sodomizam esta cidade infame… E já sabemos que quando empossado não será mais da bela cor, ficará pálido, contagiado pelo vitiligo institucional. Mas não quero fazer análise sociopolítica, só um louco gostaria de comandar esta cidade inviável, este Estado de sabujos, esta terra perniciosa, já bem disse Juliano Moreira… Mais uma dose! Deixe de cu doce, meu senhor! Vamos brindar, companheiro! Não me olhe assim! Cu doce é um coloquialismo! Veja esse homem, repare nele, e responda se algum dia ele já esteve sob o risco de perder o cargo, qualquer provento, qualquer boquinha, qual nada! Ele sempre foi de confiança, pois apreendeu a essência da lealdade mafiosa, pois na Bahia é assim o descaramento, é moeda corrente, todos se amam, todos se beijam e se abraçam, como são cristãos! E não apenas cristãos, pois todos são de algum orixá, aquele é de Ogum, aquele outro frequenta um terreiro angola no Engenho Velho de Brotas, aquela tem parte com Iansã, então Eparrei! Todos aqui têm um terreiro para chamar de seu, assim como os cariocas têm sua escolas de samba… E nossos judeus são também bastante ecumênicos. Esse mesmo indivíduo sobraçando o presente… entramos juntos no serviço público… um indivíduo inacreditável… pois eu soube que ele é de Oxóssi, então Òké Aro! Arolé! Veja o senhor que nada na Bahia me é desconhecido porque pesquiso no Google, e ele frequenta a Igreja da Vitória, inclusive já escreveu certas homílias para o finado e, por esta razão saudoso, monsenhor Sadoc, pois ele sempre conheceu muito bem os termos bíblicos, o fariseu! Os arrivistas são religiosos e dizem que ele já foi visto recitando o kadish, lá pelos lados da Quinta dos Lázaros, e tem proximidade com os evangélicos, de forma que ele é um malabarista! Ele sabe que a Bahia é hipocritamente religiosa e se garantiu de todos os lados, não me espanto se na próxima viagem ao exterior ele aterrissar no Tibet. É um prodígio e deve ter ligações com os poucos muçulmanos que restam por estas bandas, Assalamu alaikum deve ser sair gostosamente por aqueles lábios suculentos e os herdeiros dos Malês devem gostar, pois não, gostam sim, senhor! Ele se cercou por todos os lados, nada vai escapar dele. Veja o senhor que não tenho vocação para historiador, pois apenas quero traçar um perfil dessa gente que, em verdade, é uma legião a infestar todas as repartições públicas da sacrossanta terra da Bahia, até nos mais recônditos, onde juízes esperam nus e flácidos dentro do gabinete por secretárias incautas ou não tão incautas assim, gabinetes de gemidos e de penetração, onde a perícia em fazer um boquete é o primeiro critério de escolha para um empreguinho de meio expediente num cartório, ou mesmo numa prefeitura qualquer. Todos da mesma carne, todos do mesmo pó. Todos sustentam o mesmo sorriso. Sou homem antigo e moderno. Nunca tive problemas com mulheres, fui chefiado por mulheres diversas vezes em minha trajetória no serviço público, nunca tive pensamentos lúbricos na única vez em que fui chefe, nunca esperei nu, com minha caceta meia-bomba… nunca me joguei em cima de uma mulher indefesa na minha sala. Ao contrário desse aí, que não suporta as mulheres e que as oprime com seu cajado, pois ele tem um cajado, nós, os baianos, gostamos de parecer originais, e onde arranjou e qual a razão de ele guardar a porra de um cajado em casa, o demônio deve saber, o desgraçado que nasceu com o cu virado para lua, ganhou o que ele hoje mesmo? Mais uma vez homenageado. O desgraçado desperdiça sorte, caga sorte, a sorte lhe escorre pelo rabo, infiltra por entre as meias, ele a pisoteia e ela volta a se entranhar pelo corpo até que ele cague novamente, e quanto a mim nunca tive problemas com mulheres, creio, em verdade, que fui mandado por mulheres minha vida toda, mãe, tia, avó, mulher, ex-mulher, mulher de novo, filha, pois tenho gala rala e só gerei uma mulher, e o senhor bem sabe que quando a gente deixa a mulher mandar ela monta na gente e então… Coloque mais gelo, não vá afoito ou o senhor não me aguenta até o fim… se segure e veja que o negócio hoje é aderir à modernidade, se estabilizar na contemporaneidade, ou é isso ou o futuro nos enraba, a todos, mas ele era um carlista empedernido. Antônio Carlos ama a Bahia, dizia ele, quando Cabeça Branca morrer esta terra morre junto, elogiava o negócio da modernidade conservadora, explicava-me e eu encabulava, sou feito dessa matéria, encabulo-me. E o Polo? E as avenidas de vale? E a axé music? Até isso ele botava na conta de Antônio Carlos, e desdenhava aquela história do painel. E como ele lamentou a morte de Luís Eduardo! Urrava, meu senhor! Oh, Senhor! Que tormento! Como amaldiçoei Luís Eduardo só pelo fato dele ter morrido… Morreu e assim me obrigou a assistir àquela encenação pavorosa! Sentou em cima de minha mesa, derramou os papéis, derramou lágrimas, e urrava, perdemos nosso presidente, nosso futuro presidente, perdemos tudo, nosso sonho, nossa redenção, e chorava e lamentava por todo o CAB. E eu sem saber que Luís Eduardo era o Cristo-Rei! E o CAB? Todo um muro das lamentações! Brasília se esfarelou para tantos naquele dia! Veja que começamos juntos no serviço, temos praticamente os mesmos anos de estudos, as mesmas qualificações, quase o mesmo peso, sou um pouco menor, é verdade, mas sou tão esguio quanto ele, e lânguido, tenho uma languidez que atrai… beba mais, meu velho, mas se segure senão você não chega até o final. E eu fui chefe dele, em curto período, nós entramos com João Durval, eu ascendi no tempo de Waldir, um tempo curto, nós somos um quadro técnico, e eu fui chefe dele no tempo de Waldir, mas sabemos quão pouco tempo demorou, amargamos Nilo, e eu já não era mais chefe, depois veio e voltou Toninho Malvadeza, que sempre gostou de quadros técnicos, que esbofeteava quadros técnicos, que socava quadros técnicos, que chutava quadros técnicos, que humilhava quadros técnicos, que sugava toda inteligência dos quadros técnicos, que cooptava quadros técnicos, que enriquecia quadros técnicos, que elegia quadros técnicos, que alavancava quadros técnicos, mas no nosso caso ele apenas se alavancou, de nós dois apenas ele obteve a chave, e eu amarguei a modernidade e o clamor dos novos tempos, as chefas e mais chefas me sobrepujando, dizendo-me aonde ir e eu no sim senhora, sim senhora… e veio Souto, e veio César e veio Souto de novo, e ele voltou à secretaria, como chefe de gabinete, colocou-me, enxertou-me, melhor dizendo, sob a alçada dele, meus proventos melhoraram, mas não tanto assim, e ele foi para outra secretaria e o chamavam lá, acredite, de Vossa Autarquia! Ele todo um Estado!… e aquele homem sobreviveu a Wagner. Wagner que trabalhou no Polo, o Polo de ACM, pois tudo está conectado. Não afirma o chavão? Tudo estava conectado para que simplesmente esse homem ascendesse sob ACM e chegasse ao ápice pelas mãos de Wagner, veja o que é a Bahia, meu senhor, se alguém puder entender o que querem os petistas, por favor, se o senhor souber, por favor, escreva um tratado legível, mas o que dizer de um lugar em que stalinistas rendem homenagens a Exu? Os mesmos comunistas que amarram fitinhas no Bonfim? Como juntar Marx e o espírito da avó, que morreu esmagada por uma Kombi, em um mesmo quarto iluminado por lâmpadas avermelhadas? Que tragédia o ser humano! Pois esse homem me apareceu, no dia da posse de Wagner, rodando um quipá entre os dedos, um quipá preto, guardou o quipá na pastinha, são homens que gostam de pastinhas de couro, a pastinha de couro é o apêndice peniano desses homens, Freud, onde estás que não me responde? Ninguém sabe o que fez com aquele quipá, para que diabos ele precisava do quipá, mas o quipá era o toque de mestre, e ele voltou cuspindo alternância democrática e eu recebendo os perdigotos hipócritas, aspergindo respingos de solidez institucional sobre minhas faces, ruminando ênfase no social, arrotando desenvolvimento para o semiárido e eu sorvendo o bafio do carreirismo, a Bahia é tão óbvia! E ele reafirmava os miasmas da participação da sociedade civil e outros quejandos, pois esse homem que ergue o copo de uísque de uma maneira muito elegante, que é objeto de homenagem neste restaurante de comida ruim e preços extorsivos, de ambiente levemente escurecido, esse homem, que não passa de um quadro técnico, voltou para a secretaria, e tornou-se ele mesmo o secretário, respondendo apenas a Rui. E me levou junto para seu gabinete. Eu também aprendi a decorar mantras sobre a juventude, a erradicação do analfabetismo, a inclusão das mulheres, a inclusão dos negros, entre os quais me incluo, pois quem não o é nesta Bahia de Deus? Veja que a xenofobia não está em mim, como poderia? Nós, os baianos, somos hospitaleiros, veja bem, gostamos de abrir as pernas, veja os espanhóis, por exemplo… os galegos são donos de hospitais e de funerárias, de ônibus e de empreiteiras, de camarotes e de bares… nem mesmo o ressentimento está em mim, nada me é estranho, nada do que é baiano me é estranho, todos nós somos baianos assim que aportamos aqui, a Bahia inclui, diga aí se todos não comem seu bocadinho, algum bem menos, é evidente e quanto a mim apenas constato o estado das coisas, mas falar de mim é perder tempo com trivialidades, vamos falar do que vejo e eu só o vejo, ele mesmo, ele era cachaceiro, agora vive sob o manto escocês, não nego que o uísque combine com ele, o seu novo jeito, um jeito institucionalizado, o uísque empossa o homem, o emancipa, quanto a nós precisamos tomar água para rebater… antes tinha carteirinha do PFL, exultava quando ACM mandava no Brasil, que FHC comia na mão dele, não, não vá embora, não me deixe, não me deixe, escute, rapaz, senhor… aonde o senhor vai? Sente-se, por favor, meu sábio amigo. Dê mais um golinho. Hoje ele vive no camarote de Gil, tem casa na Praia do Forte e investimentos em Itacaré, Trancoso é o segundo lar, em Barreiras as vacas soletram o nome dele, ele saboreia as melhores universitárias, ele mesmo me conta, o senhor compreende? Ele participa de sociedades, e antes ele era mais moreninho, mas na Bahia o dinheiro embranquece, é um fenômeno interessante, o embranquecimento é sine qua non, ora, eu também rabisco latim, sou do tempo do clássico, sou da época da queda, isso é também óbvio, na Bahia a gente enxerta, não nomeia, e ele me disse que apesar de toda confiança, que é extensa, que é inquebrantável, que ele deposita sobre meus ombros, ele, infortunadamente, não poderia me enxertar, usou esta palavra, não poderia enxertar-me como seu chefe de gabinete, pois se tratava de um cargo eminentemente político, mas você mesmo é um quadro técnico, eu disse, você é uma indicação da cota pessoal do governador, de Rui!, acima das conveniências da coalização, que soma todos os partidos, menos dois, ou três, ou quatro, tive que pressioná-lo, e eu disse a ele, o senhor sabe que fui instigado por minha mulher, pois toda mulher nos leva à humilhação, à aniquilação, isso é verdade, meu caro amigo, mas dela falarei em outra oportunidade, e ele apenas sorriu e enxertou-me como assessor, e não pude recusar os proventos, pois sou um quadro técnico, pois meu amigo, fique mais um pouco, por favor! Para que a pressa se o futuro é a morte, não diz o chavão? Na Bahia adoramos o clichê! O clichê nos redime e nos aproxima. Sinto que somos amigos desde já e para todo o sempre, pois meu amigo, eis outro clichê para encerrar a noite: Wagner passou, Rui e seus artilheiros passarão, Netinho se vier, pequeno daquele jeito… passará também, ninguém é eterno, talvez venha um preto, ou meio-preto. Ou talvez nunca venha mesmo, os pretos daqui gostam de fazer acordos onde apenas os brancos saem ganhando… eu… eu… Eu estou sem ar! Não me bata! Todos nós somos pretos, até aquele japonês que passa por ali correndo é preto! Sobrevivemos a Juracy, Seabra sucumbe na Baixa dos Sapateiros, Mangabeira não é mais estádio, Ruy — o outro Ruy — é uma anedota de velhos, pois Luís Eduardo virou estátua e Antônio Carlos empacotou e a Bahia não acabou, a Bahia se mantém imorredoura, imemorial, imaterial, preta quando lhe convém, branca por excelência, sempre cheirando a mijo, escravocrata, idílica, iníqua, indelével, complexada, insólita, polida, complexa, leonina, abundante, inefável, barroca, arbitrária, crédula, homicida, escrota, esquálida, festiva, cínica, venal, amistosa, soturna, serelepe, hipócrita, iletrada, empolada, libertária, racista, quantos adjetivos terei que listar para que o senhor compreenda?, pernóstica, teatral, homofóbica, pragmática, popularesca, bestial, indiferente, acolhedora, cúpida, misógina, pequeno-burguesa, lasciva, anacrônica, pomposa, caótica, prolixa, descolada, famélica, deslocada, debochada, inapreensível, aristocrática, solar, coesa, solidária, ufa… quase me engasguei… um vatapá de loucuras, como diria aquele poeta das ruas, o finado Alex Delyrio… sangue embebido em lama, a Bahia continuará a mesma de sempre, e talvez venha uma mulher, elas querem tudo, não sossegam o facho, um dia isso aqui tudo será delas também, e nós estaremos aqui, sempre estaremos aqui, não arredaremos o pé, não iremos a nenhum outro lugar, nós somos o quadro técnico em que se baseia a administração, o baluarte, a escorreita âncora do Estado. Ele e eu estaremos aqui para servir pela honra e pela glória da Bahia!

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