CONTO: Quatro Vidas de Sebastião I por Flávio Costa

SEBASTIAN

O campo irregular de barro escondia, principalmente nas laterais, pedras pontiagudas de tamanho mediano cuja função era idêntica a das minas terrestres, porém no caso específico arrancavam somente o topo dos dedões. Por aqueles cantos, Sebastian só batia na bola de chapa e andava de maneira esquisita na base dos pés, os dedos inclinados para o ar.
Cercado pelo matagal, na baixada do bairro, o campo era tomado pelos meninos pelas manhãs; adolescentes o ocupavam à tarde; adultos, aos domingos. Mulheres eram encontradas durante as noites por meio de seus gemidos e risadas que ecoavam pelo breu em que o campo flutuava.
Sebastian nunca aparecia no campo de barro à noite. Resenhava com os amigos na esquina, mexendo não só com as meninas como também com os viados ou aqueles que, de seu ponto de vista, parecessem efeminados.
Era um aluno relapso, incapaz de escrever uma frase um pouco mais longa sem cometer ao menos um erro de português. Precisão somente em aritmética ou quando cobrava falta ou fazia lançamentos, ou ainda quando estapeava a bola, com o pé esquerdo, no contrapé do goleiro durante os babas na quadra do colégio. Todos em casa concentravam esperanças no futuro de Sebastian e agiam com condescendência em relação ao seu péssimo rendimento escolar e às pequenas confusões que ele aprontava na rua, vez ou outra.
Pouco antes de chegar a adolescência, ingressou em um time do bairro conveniado com o Grêmio, de Porto Alegre. Aos catorze anos, viajou pela primeira vez para lá. Voltou em menos de seis meses. A segunda estadia na capital gaúcha demorou menos de um mês. Abandonou o colégio e passava os dias em companhia dos amigos na esquina da rua aonde cresceu, ou batendo bola no campo de barro.
Tempos depois, disputou o campeonato de juniores pelo Galícia, quando se tornou vice-artilheiro da competição, apesar da indolência demonstrada em várias ocasiões. Agia como se correr atrás da bola estivesse abaixo de sua dignidade. Naquele mesmo ano, conseguiu transferência para uma equipe do norte do México, quase na fronteira com os Estados Unidos. Não completara dezoito anos e o empresário deu um jeito na papelada, sob a aprovação silenciosa dos pais.
Passeava sozinho pelo deserto mexicano. No deserto, ele respirava melhor e nunca se sentia entediado. Gostaria de ter uma bola para jogar sozinho. Mas sempre se esquecia de levar uma quando fazia seus passeios. Ele trotava, tamanha alegria nunca foi vista em campo algum. Ficou dois anos lá, sem nunca se acostumar com a comida, com a língua, e com as mulheres. Pelo menos conseguiu juntar algum dinheiro, descontada a parte que cabia ao empresário. Entregou a quantia à mãe que reformou a casa da família. O pai comprou à vista um carro 1.0. Ao fim daquele período, brigou com o empresário que o acompanhava desde quando ele tinha catorze anos e decidiu deixar o México.
No retorno, um time do interior o contratou — Serrano, de Vitória da Conquista. Detestou a cidade friorenta. Os moradores eram tão arrogantes quanto os gaúchos, ele pensava.
Durante o campeonato baiano daquele ano fez apenas um gol, de falta, quase da linha de meio-de-campo. O tento acabou escolhido o melhor da rodada e, posteriormente, um dos mais bonitos de todo o certame.
O desempenho de Sebastian, no geral, foi marcado por atuações irregulares. Seu andar elegante e os passes desafiadores das regras da geometria destoavam da mediocridade dos jogos do campeonato estadual em que jogadores se esbarravam uns nos outros como touros enlouquecidos. Dominava o jogo, porém pouco participava dele. Sebastian esquivava-se de qualquer contato físico, mais do que servir aos companheiros, seus passes precisos o distanciavam deles e dos adversários. Ele recebia e imediatamente passava e todos aqueles homens ficavam ainda mais distantes. Odiava o contato corporal, mal cumprimentava os companheiros quando eles faziam o gol, e no vestiário se destacava por sua neutralidade e pressa nas abluções; na vitória, no empate e na derrota. Não era apatia, e sim alheamento ostensivo.
No penúltimo jogo da fase de classificação, Sebastian sofreu uma lesão no menisco do joelho direito. Teve que ficar parado por um bom tempo, após se submeter a uma cirurgia, paga com os próprios recursos. Quando conseguiu manter-se de pé, passou a treinar sozinho no campo de barro; depois de se recuperar — oito meses depois — ele viajou para Alagoas e depois para o Maranhão. E continuou seguindo viagem: Acre, Bolívia e Equador. Passava meses desempregado, meses em que voltava para casa dos pais e toda noite estacionava o corpo cada vez mais pesado na esquina da rua da infância, sempre a mexer com as garotas e a perturbar os viados.
Havia qualquer coisa nos viados que o incomodava; algo que ele não saberia explicar, quem sabe era a audácia com que eles continuavam a se expor na rua, com seus trejeitos, quando o certo é que ficassem escondidos em casa, sem constranger as pessoas de bem, ele pensava.
Sebastian identificava os enrustidos, aqueles que apenas demonstram o desejo por meio de olhares esquivos, e a esses Sebastian dedicava um ódio ainda maior. Certa vez, Sebastian e os amigos de infância espancaram um, sem qualquer motivo, um que justamente fazia o tipo enrustido. O fingido apanhou no campo de barro, para aonde fora levado, sem ao menos perguntar por que estava sendo espancado, como se temesse mais a resposta do que os socos e os pontapés. Foi uma surra silenciosa. Quando eles se cansaram de bater, o enrustido se ergueu, encarou os agressores — apenas um olho permanecia aberto — , cuspiu sem atingi-los e correu em direção ao matagal. Eles riram.
Sebastian não soube explicar direito aos amigos como sabia que aquele cara era viado. Talvez o rebolado ou penteado do garoto, mas os enrustidos não rebolam, eles arremedam os homens de verdade, responderam os amigos. Sebastian insistia, ele rebolava de modo tímido, quase não se notava, precisa ter um olho treinado para perceber, disse.
Na noite em que espancou o primeiro enrustido, Sebastian dormiu satisfeito. Mesmo completando um semestre inteiro sem pisar em um gramado.
Aos poucos, Sebastian passou a conviver com dores cada vez mais tonitruantes no joelho direito. A cartilagem diminuía à medida em que crescia o número de camisas de time guardadas em seu quarto na casa dos pais. Segunda divisão do Paraguai, Mato Grosso, Peru, Maranhão novamente, Goiás, Panamá, Série A-3 do Paulista. Sergipe, onde sofreu uma nova lesão. No joelho esquerdo.
Aos 30 anos, gordo de boca diminuta, Sebastian voltou a morar de vez de no bairro. Conseguiu um emprego de cobrador de ônibus. Quando sente saudade e faz um esforço, ele joga uns dez minutos no baba de domingo. Ainda faz lançamentos precisos e passa incólume pelos relevos pontiagudos do campo de barro.
Pelo menos uma vez por mês, Sebastian dirige o envelhecido carro do pai e, com os amigos de infância, espanca viados na orla da cidade.

Crédito foto: Iano Andrade/CB/D.A Press

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