A novela da vida real

Por Martha Ribeiro

Eu sempre gostei de novelas, especialmente da atuação dos atores e atrizes. Os textos e a interpretação me fascinavam. Ainda me fascinam. Quando eu era criança, a censura sempre avisava antes de começar os capítulos do dia: “Proibido para menores de 12 anos”. Meu pai, claro, me proibia de assistir. Mas, ele nem imaginava que eu já havia descoberto uma maneira de acompanhar as telenovelas de uma forma bastante inusitada, sem que ele sequer pudesse imaginar. O cômodo onde eu dormia, ficava exatamente em frente à TV. Eu, então, empurrava um móvel de madeira contra a porta, que tinha a bandeira superior de vidro, e assistia tudo dali do alto. Essa era a minha tela privativa. Sentia-me como se estivesse num cinema. Foi assim, que eu consegui assistir as minhas novelas favoritas. A criatividade sempre transforma positivamente a nossa vida. Essa foi a primeira lição que aprendi com a infância. Mas, não é sobre mim que vou falar, hoje. Essa abertura é especialmente para contar a história de minha conterrânea, que estudou no mesmo colégio que eu, o Centro Educacional Ministro Spínola, mais conhecido como CEMS e que também gostava de assistir novelas.

Essa menina tão pequenina é atriz

Foto: Reprodução/Facebook

Em 1976, aos cincos anos de idade, ela representou o seu primeiro personagem, sob os olhos atentos da professora Zélia Barros, que viu na sua atuação, o despertar de um grande talento. Passados mais de 40 anos desde a primeira apresentação da atriz mirim, Zélia agradeceu emocionada a homenagem feita por sua ex-aluna, durante o lançamento da quarta edição da Felisquié, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia em Jequié: “Cecília é a própria arte. Esse rostinho é o mesmo rostinho de muitos anos passados. Aquela menina esperta, aquela menina linda! Cecília é um orgulho para nossa terra, para nossa Jequié. Eu me sinto feliz. Eu vou falar até o fim da minha vida, que precisamos acreditar na mudança, através da arte. A arte transforma o homem, a arte é vida, a arte une, a arte é beleza. Vamos acreditar na arte”.

Foto: Zélia Barros e Ana Cecília/Arquivo pessoal

Quando os olhos falam

Foto: Reprodução/Facebook

O jeito especial de ser de hoje é da jequieense, baiana, escorpiana e atriz Ana Cecília Costa Santos. Seus olhos verdes cintilantes, tão brilhantes, que parecem bolas de cristal chegam primeiro. Observam, estudam, analisam. A sinapse de Ana Cecília começa no olhar. Foi essa a percepção que tive ao conhecê-la pessoalmente no lançamento da quarta edição da Festa Literária Internacional do Sertão de Jequié. O olhar atento a tudo e a todos, a simplicidade, a meiguice e a segurança ao falar para o público são facilmente notadas.

A epopeia de uma sertaneja

Foto: Ana Cecília Costa/ Arquivo pessoal

Ana Cecília Costa fez teatro em Salvador, passou no vestibular para jornalismo da UFBA – Universidade Federal da Bahia, mas largou tudo quando foi para o Rio de Janeiro trabalhar como atriz. No Rio, ela fez cinema na Estácio; em São Paulo, onde mora atualmente, fez mestrado em Comunicação e Semiótica na PUC.

O seu primeiro trabalho em novela foi em 1991, na extinta TV Manchete, interpretando Marina em “Ilha das Bruxas”. No mesmo ano, participou do elenco da minissérie “Na rede de Intrigas”. Três anos depois atuou em Uma Onda no Ar, como Calu e não parou mais. Em 1995, representou Marisca em Tocaia Grande e um ano depois, Tomásia em Xica da Silva. Em 1998 fez o seu primeiro trabalho para a Rede Globo, no papel de Marilda, na minissérie Dona Flor e Seus Dois Maridos.

Nos anos 2000, Ana Cecília Costa fez oito trabalhos na televisão. Foi Janine em Vidas Cruzadas (2000 – TV Record), Isabel Cristina em O Direito de Nascer (2001- SBT), Baby em Pequena Travessa (2002 – SBT), Mirela em Canavial de Paixões (2003 – SBT), Madalena na minissérie JK (2006 – Rede Globo), Walderez em Paraíso Tropical (2007 – Rede Globo), Miquelina em Água na Boca (2008 – Band) e em 2009, novamente na Globo, viveu Leda na novela Cama de Gato. Dois anos depois, em 2011, ainda na Globo, Ana viveu Dona Virtuosa na novela Cordel Encantado. A personagem era mãe de criação de Açucena, interpretada por Bianca Bin, um dos grandes sucessos da teledramaturgia da Rede Globo. Também em 2011, participou da novela “Amor Eterno Amor”. Em 2013, participou de Joia Rara e em 2014 do seriado “A Teia”.

Dona Virtuosa em Cordel Encantado
Foto: Reprodução/Internet

Vencedora do 7º prêmio Contigo! de Cinema Nacional como Melhor Atriz Coadjuvante pela atuação no filme “Capitães da Areia” – Júri Popular, 2012, Ana Cecília dirigiu o curta ”O Casamento” e também atuou no “Livre”; e participou de diversos longas-metragens: “Mr. Bones”, “Jonas e a Baleia”, “Lua em Sagitário”, “Escaravelho do Diabo”, “3×4”, “Garotas do ABC”, “Braindogs”, “Mr Bones”, “Com Que Roupa”, entre outros.

Em 1999, Ana ganhou uma bolsa do Instituto Goethe, que contempla artistas do mundo todo o Theater Treffen, em Berlim, e faz parte do intercâmbio Brasil-Alemanha. A oportunidade surgiu durante o curso de cinema da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro.  Ela trabalhou durante quatro meses como assistente do alemão Herbert Brold, no filme “Bad Boy” (2000) e “Eclipse” (2002), docudramas produzidos pela TV Alemã na Amazônia.

Depois de ter feito um curso intensivo de alemão, Ana Cecília Costa passou no teste para fazer o papel principal da peça Hahnem Kammen, baseada no livro “Crônica de uma Morte Anunciada”, de Gabriel Garcia Márquez. Dirigida pelo polonês Andrej Woron, Ana Cecília representava uma moça, filha mais nova de uma família, que vivia num povoado latino. Um estrangeiro rico se encanta pela personagem e resolve casar com ela.  Ao descobrir, na noite de núpcias, que ela não é mais virgem, a devolve para família. Os irmãos, então, prometem matar o rapaz que violou a irmã. Toda a história é representada numa condição de enclausuramento, por isso, Ana Cecília Costa só mostrava a cabeça durante toda a peça. Só no final, a moça é libertada pelo noivo, que volta atrás ao ler todas as cartas de amor escritas por ela.

Foto: Reprodução/Facebook

Essa experiência marcante na vida da atriz, que mesmo não dominando o idioma alemão encarou o desafio, tem uma explicação: “Sempre fui muito corajosa, disciplinada e estudiosa. Além disso, para todo trabalho de composição do personagem é imprescindível se impregnar da atmosfera de que trata a obra. Eu li todas as obras de Gabriel Garcia Márquez. Minha única preocupação era errar o texto e falar em português. E, como só a minha cabeça ficava de fora, não havia expressão corporal, isso significava que eu só tinha acesso à palavra. Não podia errar”, relembra.

 

Ainda no teatro, Ana atuou em “O Sumiço da Santa”, “Drama das Estações”, “Passeio Pelo Expressionismo”, “Jekyll Hyde” e “Brida”. Protagonizou os espetáculos “A Língua em Pedaços” e “A Tartaruga de Darwin”, sucessos de público e crítica em São Paulo. Em 2018, atuou na série “RRPP”, co-produção Argentina/Brasil.

Ana também participou de em O Direito de Nascer (2001), como Isabel Cristina.

Recentemente atuou em “Órfãos da Terra” da TV Globo. Missade, personagem que representou na novela foi um sucesso de crítica e levou 10 em todas as avaliações feitas pela colunista Patrícia Kogut.

Imagem: Reprodução/Instagram

No seu perfil do Instagram @anaceciliacosta fez um agradecimento memorável a toda equipe da novela pelo trabalho realizado e a Patrícia Kogut pelo reconhecimento:

“O reconhecimento do trabalho é uma alegria, sobretudo neste caso em que através da Missade estamos jogando luz sobre o drama de tantas mulheres/mães sirias que sofrem com a guerra. Muito obrigada a Duca @ducarachid e Thelma @thelmaguedes por me confiarem essa beleza e riqueza de personagem, a toda equipe de direção pela condução sensível e talentosa das cenas, aos meus parceiros incríveis de cena pelo jogo vivo entregue e generoso; a equipe de caracterização e figurino que acertaram no olho da mosca, a Ana Kfouri @anakfouri na preparação dedicada a personagem, a Mamede, Hadi @hadibakkour Tuffic, Abdul @abdulbaset_jarour Karam ( restaurante Al Shekh), Khadija, Sidra, Toni, Mazen, @mazen_sahlia_ Ahmed @sahliaahmed Tarek @tarek_melhem_ Yazed @yazed.masri novos amigos que partilharam comigo suas histórias e me apresentaram o mundo árabe. Missade é uma obra coletiva, vamos seguir remando com força e luz, a travessia é longa, mas memorável. Inshallah! 🌟💛🌟 Muito obrigada, Patricia @colunapatriciakog”

A atriz encena

Foto: Reprodução/Facebook

Ana fez televisão, cinema e teatro magistralmente. Foi letra, música, flor bruta; virgem, prostituta, dançarina de cabaré, mulher de malandro, amante, mãe, filha, santa, médium; apaixonada, determinada, independente, enclausurada, sertaneja, refugiada. Atuou, produziu, dirigiu, adaptou.

Leu Stanislasviski, Dostoievsky, Gabriel Garcia Márquez, Jorge, Amado, Graciliano Ramos, isso só para citar alguns. Interpretou em português, baianês, sírio e alemão. Decorou o texto, o subtexto, a pesquisa de época, de costumes, de personalidade. Sua língua ficou em pedaços, mas a sua camada continuou intacta. Compôs e decompôs.

A prostituta Dalva em Capitães da Aeia
Foto: Reprodução/Internet

Para o diretor, ela sempre faz uma pergunta: “Por que você me escolheu para representar esse personagem?” Foi assim com Dalva em Capitães da Areia. A diretora Cecília Amado deu a resposta: “Ana, essa mulher representa as mulheres de Jorge Amado”. É a mulher dos livros dele, da galeria da qual pertencem Gabriela, Tieta, Tereza Batista, Dona Flor…” Uau! Que privilégio! Dalva usa um perfume para Gato, membro da gangue dos Capitães da Areia. O público não vai sentir, mas Ana coloca. Faz parte da composição do personagem. “O roteirista trabalha com o texto. Como a gente vai enquadrar, com que música, com que fragrância? Tudo é pensado”, traduz.

Laura em Divaldo – Mensageiro da Paz
Foto: Reprodução/Internet

Ela é multi, cosmopolita. São tantas e quantas, puder e quiser imaginar. Agora, Ana vive Laura, a amiga médium de Divaldo Franco, que está em cartaz nos principais cinemas do Brasil, no filme ‘Divaldo – Mensageiro da Paz’. No seu perfil no Instagram, Ana postou: “Dedico essa personagem a minha avó materna, Edite”.

E, agora, que tal viver Anésia Cauaçu, sua conterrânea, chefe do cangaço no interior da Bahia? Ana Cecília já aceitou o desafio e até os lugares íngremes percorridos pela heroína, em Jequié, ela já percorreu ao lado do autor do romance, Domingos Ailton e da roteirista do filme, a jornalista Carollini Assis. O laboratório já começou.

Domingos Ailton, Ana Ceciia Costa e Carollini Assis
Foto: Reprodução/Internet

O enredo se desenrola no início do século vinte, mais precisamente em 1916. O sertão é o espaço geográfico, onde o autor, nordestino, natural de Jequié retoma uma história real com diálogos regionalistas. Na descrição do escritor Domingos Ailton, “Anésia está à frente do seu tempo. Ela é a primeira mulher a ingressar no cangaço, antecedendo Maria Bonita, Lídia e Dadá, e, também foi a pioneira a usar calça e a praticar montaria de frente, numa época em que as mulheres só sentavam de lado”.

O romance Anésia Cauaçu representa o valor e o potencial da mulher nordestina. Tornar a identidade dessa heroína conhecida, reconstruir o seu legado numa época em que a mulher sequer tinha consciência da sua importância, é mais uma façanha da fenomenal Ana Cecília Costa, que tem na representação toda coragem e força da atriz, que ela magistralmente incorpora. No romance da vida real, a sertaneja sempre será o seu personagem principal.

Ah, que privilégio foi pesquisar a trajetória de Ana Cecília Costa e conhecer um pouco de todas essas mulheres vividas por ela na dramaturgia. Como foi gratificante imaginar as suas andanças e saber que ela viveu no mesmo espaço, desvendou caminhos diferentes, mas olhou para a mesma lua e para as mesmas estrelas que eu. Você quer inspiração maior?

Perfis:

Instagram: @anaceciliacosta

Facebook: Ana Cecília Costa

Fontes:

Portfólio de Atores:

http://portfoliodeatores.blogspot.com/2019/05/ana-cecilia-costa.html

Esquina Musical:

http://www.esquinamusical.com.br/entrevista-ana-cecilia-costa-cria-mundos-com-sua-arte/

Reportagem sobre Anésia Cauaçu:

https://youtu.be/6nwsAXveeLQ

 

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