Mudança do Garcia e a palavra guardada

Por Jailton Andrade

O carnaval de Salvador é investimento puro. Tal como na copa do mundo de futebol, o maior carnaval da terra é vitrine internacional para o patrocinador. Muitos deles se agarram nas instituições públicas como papagaios de pirata para engajar confiança, legalidade e solidez. Vejam o caso da Brahma e da prefeitura de Salvador ou do patrocínio da Acelen no camarote da polícia militar.

Abadá, trio, camarote, cordeiro, leque, tudo é outdoor para a televisão. Os artistas são escolhidos, não pela representatividade na cultura baiana, mas pelo poder (construído pelas potentes Sony e Universal Music) de aglomerar e de difundir a melodia certa pra vender produto. Basta olhar as listas de concorrentes para melhor música do carnaval dos últimos 10 anos. Fatalmente você irá encontrar os mesmos artistas de sempre, os da Universal e os da Sony Music. Pois é, o mercado fonográfico baiano nem é brasileiro.

Ao largo de tudo isso vem a Mudança do Garcia que, para além de ser um bloco integrante do circuito Osmar, no Campo Grande, é um circuito a parte. Mas a Mudança do Garcia não é um circuito comercial. O fim de linha do bairro do Garcia é onde se concentra o público que, mais tarde chegará ao Campo Grande na segunda-feira de carnaval com seu protesto, ou seus protestos. Sim, porque o Bloco da Mudança reúne diversos outros blocos de protesto, juntando as diversas pautas setoriais. A política de combustíveis, as populações indígenas, o movimento negro, o serviço público, a educação, os juros… tudo isso será tema desse grande bloco chamado Mudança do Garcia.

Mas há um movimento, deliberado ou ingênuo, de desmobilizar e desconstruir o substrato político da Mudança transformando-o em mais um circuito comercial alienado pela escolha das artistas menos conectados com a missão política do bloco e mais abraçados com a ilusão da fama oriunda, como acham, das mesmas músicas comerciais e alienantes do tal “Axé Music” impulsionadas pelo jabá da indústria fonográfica internacional.

Imagine tocar a música “Seu Amor é Canibal” de Ivete Sangalo num bloco que protesta contra a cultura do estupro? Que distopia seria tocar “Ziriguidum” dos Filhos de Jorge num grupo que protesta pelos direitos autorais contra o plágio?

A escolha dos artistas que irão se apresentar na Mudança do Garcia é fundamental para manutenção do seu caráter militante porque cada música alienante dessa, tocada no circuito, ocupa o espaço de uma outra, de palavra mais útil à promoção e à solidificação da cultura política no carnaval de Salvador. E como diz o Baiana System na música “Invisível”, cada palavra dessa, guardada na boca, vira baba.