Pesquisador imagético explica como a crença apenas naquilo que se deseja pode levar muitos a ignorar fatos e até modificar lembranças ruins do passado
Há alguns meses, o mundo que conhecemos transformou-se radicalmente, devido à pandemia da COVID-19 que, até o momento, já infectou mais de 3 milhões de pessoas em todo o planeta, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Que estamos vivendo um período caótico em meio a esse cenário pandêmico, com hospitais lotados, falta de equipamentos respiratórios, pessoas em situação de vulnerabilidade sem condições de se isolarem, entre outras questões, é fato. Já dizia John Adams (1735–1826), segundo presidente dos EUA, que os fatos são “coisas teimosas” e jamais podem ser alterados, independentemente dos nossos desejos, vontades e escolhas.
Todavia, embora as nossas inclinações e desejos sejam incapazes de mudar os fatos, podem ser capazes de construir uma verdade tão bem elaborada que tem o poder, inclusive, de omiti-los. Para isso, basta que se ignore toda e qualquer referência que comprove a veracidade do fato e, até mesmo, reconfigurar nossa própria memória neste anseio desenfreado de se acreditar apenas naquilo que se quer.
É o que acontece, atualmente, com a intensa propagação de fakenews sobre o coronavírus e a desconstrução imagética de sua letalidade. O Prof. Dr. Jack Brandão estuda o impacto das imagens na sociedade há anos e analisa como determinadas construções imagéticas no Brasil estão influenciando uma quantidade considerável de pessoas a, simplesmente, não enxergar o cenário catastrófico causado pela pandemia.
Segundo Brandão, o homem se utiliza de imagens desde que se firmou como espécie, antes mesmo que essas se concretizassem em quaisquer suportes, como se vê, por exemplo, na pintura rupestre. Assim, mais que materializar aquilo que lhe é interno, elas também servem para efetivar a comunicação. “O grande problema, especialmente a partir do surgimento da fotografia, de modo especial, é que o homem passou a considerá-las como cópia fiel da realidade, não como um mero registro segundo o olhar do artista ou do fotógrafo. Afinal, toda imagem traz as impressões de seu autor, sem que muitos se deem conta disso; e, no caso das fakenews sobre a pandemia, não é diferente”, ressalta.
O professor cita como exemplo uma montagem imagética de um caixão sepultado com sacos em seu interior, a qual vem sendo amplamente divulgada como uma “prova” para desconstruir a informação sobre o alto número de mortos; e, consequente, enterros por decorrência da COVID-19. Para Brandão, trata-se de um ato amoral, baseado no poder inebriante da imagem, aliada a outro fator: a escolha daquilo que se quer acreditar.
De acordo com o pesquisador, quanto maior é o grau de influência daqueles que realizam determinadas construções imagéticas, maior é o número de pessoas influenciadas por elas. “O governo federal, por exemplo, tem prestado um desserviço ao combate da pandemia, ao contestar dados científicos e da área da saúde, desacreditando na potência do vírus e no número de infectados e de mortos. Tais afirmações acabam por influenciar seus apoiadores a acreditar apenas naquilo que ele propaga, bem como em suas montagens imagéticas, sem buscarem referências reais para checar sua veracidade”, explica.
Brandão diz ainda que muitos “se tornam especialistas em tudo, mas nada sabem”, ao defenderem verdades sem embasamento científico, seja na área da saúde, da ciência, ou da economia. Neste campo, por exemplo, já começam a aparecer “milagres salvadores, como é o caso da pseudossolução defendida para amenizar a crise econômica no Brasil, devido à pandemia: a impressão de papel-moeda”.
“A princípio, parece algo muito simples: se o problema é falta de dinheiro, então, basta produzi-lo mais. Porém, se analisarmos o cenário em sua totalidade, veremos que não é bem assim. O grande risco de se imprimir dinheiro será a volta do monstro da inflação, desconhecido pelas gerações mais novas, mas vivenciado, amargamente, por quem conheceu o período da hiperinflação brasileira que atingiu seu ápice em 1990”, continua.
Outro aspecto que Brandão levanta é o fato de que muitos tendem a esquecer ou mesmo ignorar a maior parte dos aspectos negativos dos momentos de crise pelos quais passou, por isso se vê muita gente com ideias saudosistas de um período muito duro e difícil da vida brasileira, como a ditadura. “A partir daí, criam-se imagens de um passado que não existiu para atender a certos anseios e vontades, ou seja, diante da vontade de se acreditar no poder da impressão monetária, por exemplo, como solução viável para se sanar um problema da economia, a fim de que ela não estagne, reconfiguram-se as imagens da memória, buscando benesses onde só havia dissabores e lamentações”.
Para o Dr. Jack Brandão, “as consequências de tais reconstruções são extremamente perigosas, de modo especial quando se veem que fatos são apagados e, em seu lugar, inserem-se construções como se fossem verdades plenas. Mais do que criar uma perigosa ilusão – ao se negar uma realidade caótica que passa a ser considerada como um mero ‘alarde midiático’ para que a vida possa ser vivida ‘normalmente’ –, instaura-se, cedo ou tarde, uma verdadeira catástrofe”.
Assim, conclui o pesquisador, a imagem construída, aliada à escolha de se acreditar apenas naquilo que se deseja, pode ser mortal, no sentido exato do termo. Isso porque o fato, por si só, não é modificado efetivamente, como se quer acreditar, mas é substituído por meio de um simulacro, de uma imagem criada que, efetivamente, não tem – nem nunca terá – o poder de modificar a realidade objetiva e factual do que se tem a sua volta.
Sobre o Prof. Dr. Jack Brandão:
Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Diretor do Centro de Estudos Imagéticos CONDES-FOTÓS IMAGO LAB, editor da Lumen et Virtus, Revista interdisciplinar de Cultura e Imagem, pesquisador sobre a questão imagética em diversos níveis, como nas artes pictográficas, escultóricas e fotográficas.
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