Conto de Flávio VM Costa
A história começou com uma barra de chocolate branco. Meu avô Alberico se inclinou lambendo-a até que começasse a derreter e só parou quando restava mais uma mancha no sofá cor de abóbora. Sentou ereto e sorriu em direção à televisão desligada. Eu voltei à cozinha, peguei um copo americano, e coloquei nele um terço de açúcar. Com um pouquinho de suco de caju despejei todo o conteúdo em sua boca. Meu avô Alberico parecia muito satisfeito.
Meu avô Alberico nunca dorme nos horários corretos. Não sei como se comporta pela manhã, quando fica trancado no quarto, mas na parte final da tarde, quando eu tomo conta dele, cochila no sofá, sempre com interrupções. De noite ele repete painho, painho, me ajuda, painho, e quando me aproximo vejo lágrimas ligeiras formarem pequenas poças nas rugas do rosto. Ele segura a minha mão e diz para ajudar o painho. Em outras, ele se ergue da cama e começa a pular pelo quarto e reclama que o café estava com muito açúcar, você quer é me matar, você sabe que todo mundo na minha família morreu de diabetes, você não sossega enquanto eu não estiver estrebuchando no chão, você quer é me matar. Sua voz ganha uma força, há muito desaparecida, e ele começa a gesticular para o teto, eu não resisto a cair na gargalhada. Ele para de falar, e fica olhando para o teto.
Confesso que me aborrecia a rotina. O tempo para fazer minhas coisas era escasso, não podia me atrasar ao sair da escola, e, em casa, não posso ficar na internet nem no celular durante muito tempo, pois, às vezes, meu avô Alberico redescobre a agilidade juvenil, levanta-se do sofá e vai se inclinar sobre a janela. Moramos no nono andar.
Beira os oitenta anos, cada vez mais magro e abatido. De madrugada, minha mãe faz a comida para o dia seguinte. Ela dorme pela manhã, quando estou na escola. Ela se certifica de que todas as janelas do apartamento estejam fechadas e o tranca no quarto. Assim que eu retorno ela sai para trabalhar, dou banho nele, troco as fraldas e o sento no sofá, ligo a televisão e vou esquentar a comida. Nós comemos em silêncio, na verdade eu como e ele fica parado olhando para a comida, e de quando em vez meu avô me encara parecendo querer adivinhar alguma coisa, mas logo desiste e dá um sorriso forçado. Eu sempre fico com medo quando me encara daquele jeito, mal consigo engolir direito – para piorar, minha mãe faz a comida sem sal. Sinto sempre um alívio quando vejo aquele sorriso forçado. Significa que ele desistiu de me interrogar. Dá tristeza admitir, agora que sei da doença, mas me incomoda quando sua mente parece se rebelar e ele se esforça para voltar a ser normal como todo mundo. Deve ser o único momento, imagino, em que ele atinge a consciência do que se tornou, e fico pensando que se eu estivesse em seu lugar gostaria de ser tratada como um cachorro muito velho e muito doente que recebesse, com muito carinho, uma dose para dormir e esquecer qualquer dor.
De noite, minha mãe tempera o bife, a salada vinagrete, cozinha o arroz; o feijão, apenas aos domingos, para durar a semana inteira. Quando eu retorno da escola, retiro as coisas da geladeira e esquento, além de fritar o bife. Antes de dormir, minha mãe senta na cama com a pasta nas mãos, retira um bocado de papéis e começa a ler com uma caneta na mão esquerda com um ar de seriedade. O que faz com tanto papel é coisa que não sei explicar. Também não sei onde ela trabalha. Para emergência eu só tenho o número do celular dela, mas ela me diz para só procurá-la se for realmente algo que eu não possa resolver sozinha. Qualquer coisa você pega o dinheiro na primeira gaveta do guarda-roupa, me diz. Só conversamos no fim de semana e, mesmo assim, muito pouco. Às vezes, eu deixo o controle remoto nas mãos de meu avô, travo a janela, e dou uma volta com minhas amigas. Mas uma vez fui à praia do Porto da Barra, voltei já de noite, e quando abri a porta levei o maior susto. Meu avô chorava como criança; ele havia tirado a fralda e estava agachado no chão, todo melado de cocô e mijo. Ele gritava, se sacudia, parecia mesmo um bebê. Fiquei revoltada, e, confesso, dei um beliscão nele e, depois de um banho rápido, tranquei-o no banheiro, e passei mais de uma hora limpando aquela sujeira. Quando terminei, ele continuava chorando e dizendo que sentia dor. Deixe de manha, gritei. Coisa pior aconteceu outro dia. Eu estava trocando de absorvente, quando meu avô apareceu no banheiro e começou a gritar muito contente, você também faz, você é igual a mim, não está vendo na sua mão, você faz também e fede, fede mesmo. Eu fiquei muito constrangida, joguei o absorvente no chão e o empurrei: ele cambaleou e caiu de bunda, olhou-me assustado, e engatinhou até o quarto.
Quando era menos velho, meu avô montou um pequeno armarinho. O negócio não era muito rentável e logo Seu Alberico o trocou pelo não mais lucrativo mercado de banca de jornal e revista. Minha mãe a vendeu quando meu avô ficou doente. Me lembro de quando pequena de passar algumas tardes na banca. Às vezes, meu avô me deixava brincar no Campo Grande com outras crianças, algumas bem sujas, outras, incrivelmente arrumadas. Olhava para o céu, da minha cadeira de balanço, e admirava o azul sem nuvens daquelas tardes. Naquelas tardes o Campo Grande parecia lugar mágico, o único da cidade onde não fazia calor demasiado ou chuva que provocasse alagamentos.
Uma coisa estranha é que meu avô Alberico não lia muito, aliás, não lia nunca. E ele não me deixava ler também as revistinhas da Turma da Mônica, da Luluzinha, da Disney, mesmo eu prometendo não amassá-las. Ele nem as levava para casa. Ele apenas me deixava correr pelo Campo Grande, dizendo para não me aproximar do meio-fio.
Refleti sobre a situação do meu avô Alberico e cheguei à conclusão de que deveria ter coragem de fazer por ele o que todos deveriam fazer quando aqueles que amamos se tornam inconvenientes. Deixá-los partir quando se tornam um estorvo e são incapazes de sentir alegrias, tristezas, de tomar decisões. Deve ser desesperador para meu avô não se lembrar de nada, não ter forças para caminhar, não reconhecer as pessoas com quem se vive, não poder conversar com elas, nem desejar ficar sozinho, pois não tem autonomia para estar só, estar no mundo como uma mera presença, apenas respirar, comer maquinalmente, sem perceber os sabores dos bocados que mastiga – não que a comida da minha mãe ajude. A dignidade dos elefantes seria formidável nos homens; era só se atolar num canto assim que percebessem que começavam a atrapalhar. E assim estimulei meu avô a comer doces. Peguei a mania de comprar chocolates e doce-de-leite e despejá-los no sofá toda vez que chegava da escola. Meu avô Alberico os farejava e caía de boca.
Depois daquele dia, o suco dele passou a ter quantidades cada vez maiores de açúcar. Meu avô Alberico parecia gostar muito, o momento do dia em que reagia como um ser humano, alguém que sente desejo e é capaz de expressar satisfação. Doce era o único sabor que o paladar dele reconhece, imagino, e eu quis atender a sua última vontade.
Um dia deixei mais duas barras de chocolate branco no sofá e fui esquentar o almoço na cozinha. Poucos minutos depois escutei uns estrondos e andei até a sala, onde encontrei meu avô esmagando as barras de chocolate branco contra o chão de taco do nosso apartamento e dizendo dói muito, chame meu pai, dói muito, e então começou a gritar cada vez mais alto até vomitar um líquido viscoso cuja cor se assemelhava à do sofá. Eu fiquei aterrorizada. No quarto de minha mãe peguei todo o dinheiro da primeira gaveta do guarda-roupa, e, com muito esforço, encontrei um táxi – ele gritava cada vez mais alto e irritava o taxista. Levei meu avô Alberico até a emergência do hospital público que ficava mais perto.
Esperamos duas horas pelo atendimento, enquanto meu avô gritava numa maca no corredor, e eu morria de vergonha. O celular da minha mãe esteve todo tempo na caixa de mensagens. Quando meu avô foi atendido, fiquei numa agonia terrível de que os médicos descobrissem o que andei fazendo, e não adiantaria explicar minhas intenções.
Depois de muito tempo, um médico magro me chamou. Ele me disse que meu avô Alberico tinha dores renais, provavelmente por conta de pedras nos rins, mas que o ultrassom não conseguia localizá-las, talvez por estarem ainda no início da formação. Se ele beber muita água, suco de frutas de cítricas e tomar esse medicamento (me passou a receita), as pedras devem ser expelidas naturalmente pela urina. De qualquer forma eu recomendo que ele consulte um nefrologista. Mas o problema de seu avô é outro.
É, eu sei, respondi. Açúcar…
Não, não é açúcar, se deve tomar cuidado com isso também, mas o nível de glicose dele está dentro dos padrões. Sua família sabe o que ele tem, não sabe?
Ahn?
É claro que vocês sabem, o estado clínico dele é evidente.
Sim…
Não sou especialista, mas é evidente. Você tem certeza que sua família sabe? Se não sabe, sua família tem que levá-lo também a um neurologista o mais rápido possível…
Tentei enrolar o médico. Ele pareceu não gostar do que ouviu, e, sem paciência, repetiu apressadamente as recomendações. Liberou meu avô Alberico dizendo que a emergência precisava do leito que ele ocupava. Chegamos antes que minha mãe retornasse do trabalho. Depois contei tudo a ela, menos o plano do açúcar. Ela me revelou qual doença atacava meu avô, mas que nada poderia fazer; ele não vai resistir por muito tempo e a gente não pode gastar o dinheiro da aposentadoria com remédios inúteis. Fiquei acordada durante toda aquela noite.
Abandonei o plano do açúcar. Passei a só dormir quando minha mãe chega. Quando fico sozinha eu começo a pensar em outras maneiras de me livrar do meu avô Alberico. E sempre me arrependo no fim. Mas recomeço a planejar, ao menor descuido: poderia deixá-lo voltar a se debruçar sobre a janela… e então seria acusada de negligência. Às vezes chego à conclusão de que preciso mesmo aliviar o sofrimento dele… às vezes penso no meu sofrimento. É um alívio quando vou para a escola. Quando volto o inferno na mente reaparece. Meu espírito agora se aquieta quando ouço os passos da minha mãe se interromperem diante da nossa porta, as batidas de pé no tapete, o revirar das chaves, e vejo a luz acesa da sala por entre as frestas da porta de nosso quarto. E deixo de pensar em meu travesseiro como uma espécie de arma limpa… aperto-o contra o peito várias vezes e perco a coragem. Para me redimir vou até a cama do meu avô Alberico. Ajeito o travesseiro dele. Eu o beijo três vezes na face esquerda e o abraço. Peço-lhe que me perdoe. Meu avô Alberico ficaria feliz se pudesse reconhecer a garota que deita ao lado, mas ele já nem tenta, pergunta pelo painho, e continua a olhar para o teto.